domingo, 15 de março de 2009

O escaganifobético

Ao ler o «post»do Paulo Pinto do Jugular, acerca do Puto Charila, veio-me à memória uma série de memórias da minha infância. Há anos que não ouvia falar do Puto Charila e as semelhanças são tantas que quase diria que o Paulo Pinto estava a falar da mesma pessoa que eu conheci muito bem.
E se calhar não, porque eu estudei numa enorme escola primária do Porto, não na província. E apesar das parecenças, as recordações que me ficaram do Puto Charila são essencialmente diferentes das do Paulo Pinto. Quando me lembro do Puto Charila, lembro-me de alguém que mudou decisivamente o rumo daquela escola. Lembro-me de alguém muito especial, que só por despeito era criticado por alguns.
Valha a verdade que era um miúdo diferente dos outros. Mesmo sendo recém-chegado, não tinha qualquer problema em assumir-se, em criticar tudo o que estava mal, em apontar o dedo, mesmo aos mais poderosos. De falta de coragem, ninguém podia acusá-lo. Essa sua personalidade levou-o a criar conflitos e inimizades. Mas ao mesmo tempo, criou uma aura de mistério e de curiosidade à sua volta.
Os aplausos chegavam de todas as turmas, mas, por vezes, o pequeno génio era alvo da incompreensão dentro da sua própria turma. Muitos dos colegas não percebiam o seu posicionamento, a forma como muitas vezes defendia toda a turma e se colocava à frente do pelotão. O seu amor à camisola da turma.
Na verdade, só um é que não gostava mesmo dele. Era o Delegado de Turma. Quase nunca falava, nunca se assumia, mas entretinha-se na sombra a fazer intrigas. Alguns admiravam-lhe a sapiência, mas essa admiração partia mais de «ouvir dizer», porque o certo é que ele raramente produzia o que quer que seja que pudesse ser elogiado. A bem dizer, ele raramente dava o seu contributo à turma. Para cúmulo, esse Delegado de Turma passava informações internas às turmas rivais, aproveitando para contar em pormenores cenas passadas com o Puto Charila dentro da turma.
Todos os outros colegas gostavam do Puto Charila, mesmo que por vezes não concordassem com ele. Era o caso de um dos veteranos, que até já tinha dirigido o Jornal da Escola mas que fora demitido sem se perceber muito bem por quê. E era o caso de um outro colega que, quando se sentia atingido, desatava a maltratar quem o tinha atacado. Chegava a ser rude e a insultar forte e feio, mas o Puto Charila gostava muito dele.
Com efeito, só o Delegado não o suportava. E não o suportava porque o Puto Charila era simplesmente o melhor da turma. Algo preguiçoso, por vezes desiquilibrado na forma como realizava os seus deveres, mas excelente em tudo o que fazia. Um pequeno génio. E por não estar disposto a aceitar que pusessem em causa o seu lugar no seio da turma, o Delegado conseguiu pô-lo fora. Ou melhor, fê-lo sentir-se tão mal que ele acabou por sair.
Nos tempos que se seguiram, o Puto Charila ainda foi rondando a sua antiga turma. Não porque quisesse voltar - com aquele Delegado de Turma, nunca! - mas porque ainda gostava realmente dos seus colegas. Do antigo Director do Jornal da Escola; do colega que insultava os outros; de um outro que era muito sensível, uma verdadeira florzinha cheia de amor para dar; de um branquinho que denotava aqui e ali uma certa insegurança, mas que era uma jóia de pessoa; de um outro que era «barra» nos computadores, mesmo que na altura ainda não existisse internet; e de todos os outros.
Gostava muito daquela gente, mas certo dia, chegou à conclusão de que era necessário partir. E partiu. Foi pregar para outra freguesia e, por ali, ninguém mais ouviu falar do Puto Charila. Altos voos o esperavam!
Bem, as memórias são como as cerejas. Umas trazem as outras. De repente, lembrei-me de um rapaz algo estranho que pertencia a uma turma rival da do Puto Charila. Era conhecido pelo nome de Escaganifobético. Nunca soube se esta palavra existe mesmo e se, existindo, se escreve mesmo assim.
A turma a que ele pertencia era realmente má, uma das piores. Seriam umas 50 ou 60 turmas naquela escola e, num engraçado Turmómetro que a Associação de Estudantes organizava semanalmente, a turma do Escaganifobético nunca conseguia entrar no Top-25. Já a turma do Puto Charila, ao invés, estava sempre nos primeiros 15 lugares, embora, com a saída do Puto, a queda no Top se tenha tornado inevitável.
Para dizer a verdade, nem sei por que razão me lembrei do Escaganifobético - alguns colegas diziam Escanifobético. O puto era realmente uma nulidade. Não valia um chavo e só estava naquela escola porque era sempre um fiel seguidor da Delegada de Turma, uma rapariga com muito jeito para escrever e para controlar todos os que a rodeavam. Aquele charme que algumas mulheres conseguem ter, mesmo em piquenas! Pior do que o Escaganifobético, só mesmo um outro colega da turma, a que chamavam o Palonço e que, tal como aquele, fazia o que a chefe mandasse. Desde que lhe pingasse em cima...
O Escaganifobético era o autêntico cão de fila. Fazia o que o mandavam. Geralmente coisas desinteressantes, mas, que Diabo, para alguma coisa havia de servir! Era uma espécie de paquete, o moço dos recados que, no final da tarefa, recebia umas festinhas na nuca. Feliz por ter agradado à Delegada de Turma, abanava o rabo furiosamente. E deitava-se feliz, sonhando com o dia seguinte, em que, mais uma vez, iria ser útil à sua dona.
Soube mais tarde que o Escaganifobético caíu em desgraça junto da Delegada de Turma e que, fruto do seu carácter fraco e traiçoeiro, não conseguiu que mais ninguém o acolhesse. Desapareceu rapidamente e nunca mais ninguém ouviu falar dele. Rastejante, aprendeu a aperfeiçoar o faro e a procurar outro dono que o fizesse sentir-se amado.
O cérebro humano é uma caixinha de supresas. Há mais de vinte anos que não me lembrava do Puto Charila e do Escaganifobético. O «post» do Paulo Pinto relembrou-me essas personagens. Só tenho de lhe agradecer.

1 comentário:

José Freitas disse...

A verdade é que há, caro Ricardo, muitos putos do género em todo o lado. E em permanência. Em empresas, departamentos públicos, escolas, partidos, etc. Geralmente são fáceis de encontrar. São os mais ranhosos.