quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Momentos de lucidez (I)



É a lei da vida. Chegamos a uma altura em que perdemos a lucidez. Ficamos senis. Velhos. Acabados.
Aquela que outrora foi a sua grande qualidade, a lucidez, Mário Soares perdeu-a.
A lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom par de anos, num exílio dourado, em hotéis de luxo de Paris.
A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma «brilhante» que se viu o processo de descolonização.
A lucidez que lhe permitiu conseguir que os Estados Unidos financiassem o PS durante o seu primeiro Governo minoritário.
A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta durante a sua experiência governativa.
A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os «dossiers».
A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser primeiro-ministro depois de tão fantástico desempenho no cargo.
A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para ser agredido na Marinha Grande e, dessa forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e vencer as eleições presidenciais.
A lucidez que lhe permitiu, após a vitória nessas eleições, fundar um grupo empresarial, a Emaudio, com «testas de ferro» no comando e um conjunto de negócios obscuros que envolveram grandes magnatas internacionais.
A lucidez que lhe permitiu utilizar a Emaudio para financiar a sua segunda campanha presidencial.
A lucidez que lhe permitiu nomear para Governador de Macau Carlos Melancia, um dos homens da Emaudio.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume ao caso Emaudio e ao caso Aeroporto de Macau e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos para uma Fundação na sua fase pós-presidencial.
A lucidez que lhe permitiu ler o livro de Rui Mateus, «Contos Proibidos», e ter a sorte de esse mesmo livro, depois de esgotado, jamais voltar a ser publicado.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume às «ligações perigosas» com Angola, ligações essas que quase lhe roubaram o filho no célebre acidente de avião na Jamba (avião esse carregado de diamantes, no dizer do Ministro da Comunicação Social de Angola).
A lucidez que lhe permitiu, durante a sua passagem por Belém, visitar 57 países («record» absoluto para a Espanha - 24 vezes - e França - 21), num total equivalente a 22 voltas ao mundo (mais de 992 mil quilómetros).
A lucidez que lhe permitiu visitar as Seychelles, esse território de grande importância estratégica para Portugal.
A lucidez que lhe permitiu, no final destas viagens, levar para a Casa-Museu João Soares uma grande parte dos valiosos presentes oferecidos oficialmente ao Presidente da República Portuguesa.
A lucidez que lhe permitiu guardar esses presentes numa caixa-forte blindada daquela Casa, em vez de os guardar no Mseu da Presidência da República.
A lucidez que lhe permite, ainda hoje, ter 24 horas por dia de vigilância paga pelo Estado nas suas casas de Nafarros, Vau e Campo Grande.
A lucidez que lhe permitiu, abandonada a Presidência da República, constituir a Fundação Mário Soares. Uma fundação de Direito privado, que, vivendo à custa de subsídios do Estado, tem apenas como única função visível ser depósito de documentos valiosos de Mário Soares. Os mesmos que, se são valiosos, deviam estar na Torre do Tombo.
A lucidez que lhe permitiu construir o edifício-sede da Fundação violando o PDM de Lisboa, segundo um relatório do IGAT, que decretou a nulidade da licença de obras.
A lucidez que lhe permitiu conseguir que o processo das velhas construções que ali existiam e que se encontrava no Arquivo Municipal fosse requisitado pelo filho e que acabasse por desaparecer convenientemente num incêndio dos Paços do Concelho.
A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao longo dos últimos anos, donativos e subsídios superiores a um milhão de contos.
A lucidez que lhe permitiu receber, entre os vários subsídios, um de quinhentos mil contos, do Governo Guterres, para a criação de um auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifício cedido pela Câmara de Lisboa.
A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e 2005, uma subvenção anual da Câmara Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador e Presidente.
A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe arrendasse e lhe pagasse um gabinete, a que tinha direito como ex-Presidente da República, na... Fundação Mário Soares.
A lucidez que lhe permite, ainda hoje, receber quase 4 mil euros mensais da Câmara Municipal de Leiria.
A lucidez que lhe permitiu fazer obras no Colégio Moderno, propriedade da família, sem licença municipal, numa altura em que o Presidente era... João Soares.
A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de pressões sobre o director do «Público», José Manuel Fernandes, a investigação jornalística que José António Cerejo começara a publicar sobre o tema.
A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a Presidente do Parlamento Europeu e chamar dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole Fontaine.
A lucidez que lhe permitiu considerar José Sócrates «o pior do guterrismo» e ignorar hoje em dia tal frase como se nada fosse.
A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um amigo, Manuel Alegre, para concorrer às eleições presidenciais uma última vez.
A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um frete ao Partido Socialista.
A lucidez que lhe permitiu ler os artigos «O Polvo» de Joaquim Vieira na «Grande Reportagem», baseados no livro de Rui Mateus, e assistir, logo a seguir, ao despedimento do jornalista e ao fim da revista.
A lucidez que lhe permitiu passar incólume depois de apelar ao voto no filho, em pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas.
No final de uma vida de lucidez, o que resta a Mário Soares? Resta um punhado de momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai. Vai... e não volta mais.


Publicado por Ricardo Santos Pinto

6 comentários:

José Freitas disse...

Ainda assim, apesar de tudo, manteve a lucidez para ter um espaço nos futuros compêndios da História de Portugal. E, claro, se não tiver esse espaço é garantido que os mesmos vão esgotar e nunca serão reeditados.

A. Moura Pinto disse...

Não tivesse ele elogiado há dias a Maria de Lurdes Rodrigues e outro galo cantaria...
E isto diz bem desta oportunidade do comentário e, claro, da sua isenção e seriedade.

zoltrix disse...

belíssimo texto!!!!!!!falta talvez a lucidez em arranjar amigos como Carlluci mas isso seria um desfiar que acabaria penoso...

Ricardo disse...

A. Moura Pinto,

Não censuro comentários.
Gosto muito da sua presença na minha casa. Mas se é para me insultar, não precisa de voltar.

Zoltrix,

São tantas, tantas, que acaba por ficar alguma para trás. Mas se reparou, o título é Momentos de lucidez (I). Voltarei ao assunto.

Ricardo Santos Pinto

Anónimo disse...

Do hilariante texto que escreveu é capaz de referir algum meio de prova que assegure a veracidade destes factos?
É que a liberdade de expressão tem limites e exige responsabilidades. Lá por estarmos na blogoesfera não o insenta das mesmas.
Cumprimentos

Tiago Ferreira

Ricardo disse...

Anónimo,

Tudo o que escrevi veio publicado, na sua época, na imprensa. Não me baseio em «sites» pouco fidedignos, mas apenas em fontes credíveis. Se assim fosse, o texto seria duas ou três vezes maior, porque sabe, tal como eu, que sobre Mário Soares conta-se muita coisa.
Se me puder apontar um caso em que tenha dúvidas, terei todo o prazer em esclarecê-lo.
Ainda assim, poderei adiantar-lhe que, para os casos mais polémicos, utilizei, como fontes, os «Contos Proibidos», de Rui Mateus; o artigo «O Polvo», publicado por Joaquim Vieira na «Grande Reportagem» em 2005; o blogue «Do Portugal Profundo», do professor António Balbino Caldeira; e o jornal «Público».
Cumprimentos e seja bem-vindo.

Ricardo Santos Pinto