quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

16 de Novembro - Requiem pela Ministra da Educação



Maria de Lurdes Rodrigues foi professora primária. Seja porque teima em esconder esse facto do seu «curriculum» oficial (terá vergonha?), seja porque a subserviente comunicação social portuguesa nunca se interessou pelo assunto, o certo é que gostaria de saber mais sobre o seu desempenho no ensino real. Foi uma professora exemplar? Não chumbava alunos? Utilizava métodos inovadores? Tinha uma boa relação pedagógica com os alunos? Algum desses alunos se lembrará dela? Foi avaliada? E se não foi, a culpa foi sua?
À falta destes elementos, tenho de me limitar a avaliar o seu desempenho, como ministra da Educação, entre 2005 e 2008. Não tenho dúvidas de que uma grande parte da sociedade portuguesa bateu palmas à sua actuação, mas, para aqueles que vêem para lá do folclore político, o seu mandato deixou muito a desejar. Resumiria o seu mandato de três anos numa frase: uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.
Os principais problemas do sistema educativo mantiveram-se e nada a ministra fez para a sua resolução. Os programas continuam completamente desfasados da realidade, tanto em termos de dimensão como de conteúdos. Os manuais escolares apresentam erros graves e os seus preços são exorbitantes. Continua a haver turmas com mais de trinta alunos em salas de aula sem as mínimas condições. Psicólogo nas escolas, para já não falar em assistente social, continua a ser uma miragem para a maior parte dos Agrupamentos. Continua a haver falta de funcionários e cada vez são mais os tarefeiros, que chegam a ter horários de uma hora por dia. Os Quadros das Escolas continuam sem ser devidamente preenchidos, daí a necessidade de chamar professores contratados, num processo que chega a demorar um mês (período durante o qual os alunos não têm aula à respectiva disciplina).
Podia continuar com dezenas de exemplos daquilo que devia ter sido prioritário para este ministério. Porque, no sistema educativo, nada há mais importante do que os alunos. É por eles e para eles que tudo existe. E são eles os únicos prejudicados pelas situações que referi anteriormente.
Se nestes casos o ministério nada fez para resolver os problemas, houve casos em que os piorou. Foi o caso dos cerca de quarenta mil miúdos com Necessidades Educativas Especiais que, por razões economicistas, perderam o apoio de que usufruíam. Foi também o caso dos professores do Ensino Especial, cuja especialização deixou de ser uma obrigatoriedade. Qualquer um pode encarregar-se desses alunos.
Foi o caso da obsessão pelas estatísticas. Ao ponto de facilitar até ao enjoo os exames nacionais, para se poder dizer que a sua política foi um sucesso. O objectivo, já o assumiu, é acabar com as reprovações dos alunos. Resultado: hoje em dia um aluno pode transitar sem ter nenhuma positiva. NENHUMA!
Foi, ainda, o caso do Estatuto do Aluno, que, ao contrário do que se tem dito, e ao contrário do que os alunos pensam, é muito mais permissivo do que o anterior. O anterior Estatuto, publicado pelo ministro David Justino, previa a expulsão do aluno como medida disciplinar sancionatória, no caso de esse aluno estar fora da escolaridade obrigatória. Nesse ano lectivo, o aluno ficava imediatamente retido e não podia inscrever-se noutra escola. O actual Estatuto do Aluno elimina essa sanção e a transferência passa a ser a pena máxima, mas apenas se a Direcção-Regional de Educação concordar.
Segundo o anterior Estatuto do Aluno, o Conselho de Turma (conjunto dos professores da turma) podia ser chamado a decidir da suspensão do aluno entre 5 a 10 dias. Com o actual Estatuto, essa participação dos professores, afinal aqueles que conhecem o aluno, é simplesmente revogada. A partir de agora, o Director «pode previamente ouvir os professores da turma». Nem sequer é obrigado a ouvi-los.
E depois há a questão das faltas. No Estatuto anterior, quando ultrapassavam o limite de faltas injustificadas, os alunos ficavam retidos ou eram desde logo excluídos, se estivessem fora da escolaridade obrigatória. Agora, podem faltar o que quiserem que têm direito a uma prova de recuperação, «independentemente da natureza das faltas». Ou seja, faltar porque se foi operado ou faltar porque se foi para o café é exactamente a mesma coisa. E se o aluno reprovar na prova de recuperação, ainda pode ver as suas faltas justificadas e ainda pode ter direito a uma nova prova de recuperação.
Ou seja, não interessa se os alunos se esforçam ou não, se cumprem os seus deveres ou não. Porque quem se balda obtém os mesmos resultados do que aqueles que se esforçam. Afinal, o que interessa é acabar com os chumbos.
Como é óbvio, os alunos que se esforçam, mas não conseguem, é que deviam ser apoiados com aulas de recuperação constantes às disciplinas em que têm dificuldades, em vez da fantochada que, hoje em dia, continuam a ser as aulas de substituição. Outro dos problemas criado pelo ministério que em nada veio ajudar os alunos.
É tempo perdido para os alunos, que nada aprendem enquanto estão nessas aulas. O que vêem à sua frente é um professor que não conhecem, que não respeitam e que nada percebe daquela disciplina, mesmo que leve uma ficha de trabalho deixada pelo colega em falta. Admito aula de substituição no caso de ser leccionada por um professor da disciplina. Nada mais.
Curiosamente, porque o professor tem de estar na escola um número determinado de horas, é colocado em aulas de substituição, ou então na Biblioteca, Sala de Estudo, etc.. Se está em aula de substituição e nenhum colega falta, fica na Sala de Professores, duas horas ou mais, sem fazer nada. Se vai para a Biblioteca, Sala de Estudo, etc.., nada tem para fazer, porque os alunos estão em aula ou em substituição, por isso não podem sair da sala. Não seria difícil aproveitar melhor o trabalho dos professores de forma a beneficiar também os alunos, sobretudo através de aulas de apoio individuais para todos os que precisassem.
Depois, há outras medidas que se podiam ter revelado positivas, mas a sua implementação não o permitiu. É o caso do Inglês desde a 1.ª Classe. Acontece que é uma AEC (Actividade Extra-Curricular) e, logo, não-obrigatória. Os alunos chegam ao 5.º Ano com ritmos totalmente diferentes. Alguns tiveram quatro anos de Inglês, outros não tiveram nenhum. E os que tiveram quatro anos, voltam a levar com a iniciação, como se partissem do zero – daí à desmotivação, vai um pequeno passo. Daqui a uns anos se verão os resultados.
Para além disso, muitas aulas são dadas na cantina, no ginásio, no contentor, onde quer que seja. E tudo é feito à custa de professores com recibo verde, que por vezes recebem 5 euros por hora, mas apenas as horas efectivamente leccionadas. É feriado e não há aulas? Tem de acompanhar o filho recém-nascido à consulta na Maternidade? Tem de ir ao funeral do pai? Azar, será descontado. Dir-se-á que a culpa é dos municípios, mas quem fez a lei foi o Governo.
O «Novas Oportunidades», lançado pelo ministro David Justino, foi uma excelente medida, igual ao que já existe por toda a Europa. Mas qualquer instituição pode fazer a formação para validação de competências. Há empresas privadas que recebem dinheiro para fazê-lo, mas os seus funcionários não chegam a comparecer uma única vez e obtêm o diploma em dois ou três meses. Há instituições que permitem fazer do 5.º ao 12.º ano em seis meses. As estatísticas é que contam. Faz lembrar o Fundo Social Europeu.
Quanto aos professores, o novo Estatuto da Carreira Docente está na base da maior parte das críticas à ministra. Em nenhum dos países desenvolvidos há uma divisão na carreira entre professores e professores titulares. Porque todos são professores e aqui, não há nem deve haver hierarquias. Todos os professores são iguais. O problema piora quando são os titulares que vão avaliar os professores.
Estes titulares, relembre-se, chegaram a este cargo com base apenas nos cargos ocupados nos últimos sete anos. Não são os melhores, são os que tiveram mais cargos. Para efeitos administrativos, em 2007 a ministra Maria de Lurdes de Rodrigues classificou-os a todos com a menção qualitativa de BOM. Onde é que já se viu isto? Já chegámos à Madeira?

É por isso que o Estatuto da Carreira Docente é a fonte de todos os males. Porque tem uma série de implicações negativas, apesar de revelar alguns aspectos positivos, relacionados sobretudo com as faltas dos professores.
Por fim, no que toca à avaliação do desempenho, há alguns anos atrás havia uma prova pública de acesso ao 8.º escalão. Os professores que reprovassem nessa prova nunca ascendiam ao topo da carreira e ficavam para sempre no 7.º escalão. Essa prova pública de acesso, essa sim que distinguia os melhores professores, foi abolida pelo Governo do PS de António Guterres, do qual fazia parte José Sócrates.
A partir daí, 1998, passou a existir a progressão automática na carreira. E aplauda-se o fim desse sistema. É fundamental avaliar e não se pode admitir que um professor que não faz nada progrida da mesma forma que outro que se empenha a sério.
Mas tem de ser uma avaliação justa, que não contenha factores pelos quais o professor não é responsável e que não controla minimamente, como é o caso do abandono escolar ou do insucesso escolar. Não admito que, em Setembro, tenha de dizer que 90% dos meus alunos vão ter positiva e 10% negativa. E se o número de negativas for maior? Devo ser prejudicado na minha avaliação porque não cumpri os objectivos? Ou passo os alunos para ajustar a sua classificação aos meus objectivos? E se os alunos abandonarem a escola para ir trabalhar, ou emigrarem com os pais, como acontece muito no Interior, por que razão devo ser prejudicado na minha avaliação?
Para além disso, era perfeitamente possível avaliar um professor sem obrigá-lo a tamanha carga burocrática. Veja-se este exemplo referido por Manuel António Pina, esse grande sindicalista: «Uma professora com 9 turmas e 193 alunos vai ter que introduzir manualmente no computador 17 377 registos e fazer 1456 fotocópias, além de participar em algo como 91 reuniões. Contas feitas, a 1 minuto por registo, e visto que a professora é um Usain Bolt informático, e não dorme nem come, nem se coça, nem se assoa, inteiramente entregue à avaliação, são 290 horas, isto é, 12 dias (noites incluídas).
Já 1456 fotocópias a 1 minuto cada (tirar o papel do monte, pô-lo na bandeja da fotocopiadora topo de gama da escola, esperar que saia fotocopiado e colocá-lo noutro monte), levam-lhe mais um 1 dia (noite incluída). E 91 reuniões, também de 1 minuto, mais 91 escassos minutos. Ao todo, a professora fará a coisa em pouco mais de 13 dias (noites incluídas). Qual “pesadelo burocrático” qual quê! No fim ainda lhe sobrarão, se alguém a conseguir trazer do cemitério ou do manicómio, 152 dias para dar aulas, aprovar os 193 alunos e contribuir para as estatísticas da ministra.»
Ou veja-se as grelhas de avaliação publicadas pelo Governo em «Diário da República». Duas simples folhinhas, como se pode ver neste PDF.
Claro que, para toda a gente, os professores não querem ser avaliados. Para toda a gente, professores e sindicalistas (as centenas que há anos não entram numa sala de aula e que, em nome dos professores, assinam entendimentos com fins meramente partidários e que vendem os seus representados à primeira oportunidade) é exactamente a mesma coisa.
É fácil generalizar e uma mentira dita muitas vezes transforma-se em verdade. Mas a realidade desmente-o: não têm faltado, na internet e nas escolas, a apresentação de modelos alternativos ao modelo chileno que este ministério optou por implementar. Ai, ai, esse grande país que é o Chile!
A Fenprof já apresentou um modelo alternativo. A FNE prepara-se para fazer o mesmo. O professor Paulo Guinote, em «A Educação do Meu Umbigo», também já o fez: “Corresponder ao final de cada ciclo de progressão, servindo exactamente para definir a passagem ao escalão seguinte.
Corresponder a períodos de três anos – o que implicaria uma progressão na carreira com mais níveis salariais e sem saltos tão grandes entre níveis.
Basear-se na apresentação pública de duas aulas, uma sobre a actividade desenvolvida no período anterior, podendo ser mais geral (apreciação global do trabalho realizado) ou mais específica (apresentar uma intervenção mais particular em torno de um problema) e outra sobre o(s) projecto (s) a desenvolver no período trianual seguinte (actividades não lectivas a dinamizar, projectos inovadores no trabalho em sala de aula).A prova seria avaliada por um júri que incluísse um elemento do Ensino Superior na área das Ciências da Educação ou da área científica de origem do avaliado, o(a) Presidente do órgão de gestão da Escola, um elemento a designar pelo ME (potencialmente um inspector qualificado para o efeito), um representante da comunidade educativa (por exemplo da Associação de Pais) e o coordenador do Departamento Curricular (no caso da avaliação destes, seria substituído, por exemplo, pelo Coordenador dos Docentes do seu ciclo de ensino).
Essa prova contaria para 50% a 70% da avaliação (25% a 35% por cada aula), sendo o restante resultante de uma avaliação realizada internamente quanto ao desempenho do docente em termos de assiduidade, inserção no projecto educativo da escola, cumprimento das actividades lectivas e tarefas não lectivas, numa grelha com não mais de 10 parâmetros.»
Vão continuar a dizer que não conhecem nenhum modelo alternativo ao modelo chileno?
Cá por mim, e apesar de não ter nada que andar a apresentar modelos de avaliação (sou professor, não político ou sindicalista), eu optava pelo modelo de avaliação de professores da Finlândia.
É o exemplo para tudo, não é, o finlandês? Até querem acabar com os chumbos, porque assim se faz na Finlândia! Então, eu quero ser avaliado segundo o modelo finlandês.
No meio disto tudo, faça-se justiça à ministra. Nada disto partiu da sua cabeça. Não me parece que seja assim tão inteligente. João Freire, sociólogo, foi o seu grande mentor.
Da sua cabeça saiu, sim, o tipo de discurso e pose utilizados, e isso é indesculpável. Um ministro é um patrão, e um patrão não se deve esforçar para que os seus funcionários o detestem. Mesmo que tome medidas contra os interesses dos seus funcionários, não o deve fazer com arrogância e altivez, como se quisesse «trucidar» (nas palavras de um Secretário de Estado) quem não está de acordo com ele. Correia de Campos fez reformas e pôs em causa interesses, mas não me lembro de uma palavra mais desagradável contra os seus funcionários, como os médicos. Não precisou de gritar nem de insultar para ter razão.
Pessoalmente, não lhe perdoo a forma como me desmotivou. A forma como me «pintou» aos olhos da sociedade portuguesa, do resto da comunidade educativa. Lembro com saudades o ano de estágio – todos os meus alunos desse ano foram convidados para o meu casamento, todos foram e juntaram 40 contos (era dinheiro em 1996!) e uma salva de prata para me oferecer. Lembro-me como então abri um conflito familiar, porque convidei os meus alunos e não convidei os meus primos. Lembro-me que ainda hoje continuo a jantar com eles de vez em quando. Lembro-me que, alguns anos mais tarde, os meus alunos do 9.º ano ficaram sem uma visita de estudo que lhes estava prometida e, para compensá-los, fui uma semana para o campismo com eles. Depois das aulas acabarem e responsabilizando-me pessoalmente por tudo perante os pais. Lembro-me que, ainda em 2005, ficava na escola até à meia-noite, às vezes, só para poder acabar o Jornal da Escola a tempo de ser entregue aos alunos.
Não precisava de leis para estar na escola horas infinitas. Não precisava de avaliações para correr quilómetros para encontrar um filme ou uma música para mostrar aos meus alunos. Não precisava de agradecimentos, mas também não precisava de ser insultado diariamente por quem manda em mim. Nem precisava de generalizações – se havia quem não cumpria e por isso tinha de ser responsabilizado, e para isso era necessário mudar a lei (e muito bem), isso não significava que todos tivessem de ser metidos dentro do mesmo saco.
Aos que pensam que todos os professores são iguais, aos que pensam que é um paraíso ser professor, só queria vê-los uma semana a trabalhar numa escola difícil, num dos Bairros Sociais do Porto ou de Lisboa. Olhem que não é fácil, não é nada fácil.
E se num tom irónico, no final do seu mandato, a ministra veio pedir desculpas pela desmotivação que criou aos professores, devia era ter pedido desculpa a todo o sistema público de ensino. Porque, ao fim de três anos e depois de tanta histeria, nada mudou de realmente importante.
Perdão, mudou a situação das escolas públicas nos rankings das escolas. Já se sabe que é estupidez comparar ensino privado (onde os alunos são seleccionados à lupa) com ensino público, que faz muito mais em condições muito mais difíceis.
Mas já se pode comparar o desaparecimento do ensino público dos lugares cimeiros nos últimos anos. À medida que as medidas de Maria de Lurdes Rodrigues foram sendo implementadas, as escolas públicas foram desaparecendo do mapa:

Média 2001/2006 – 2 escolas públicas nos 10 primeiros lugares; 6 nos 20 primeiros; 10 nos 25 primeiros; 33 nos 50 primeiros.

2007 – 1 nos 10 primeiros; 5 nos 20 primeiros; 9 nos 25 primeiros; 28 nos 50 primeiros.

2008 – 0 (ZERO) nos 10 primeiros; 3 nos 20 primeiros; 7 nos 25 primeiros; 23 nos 50 primeiros.

Mais do que as medidas, mais do que os resultados, foi o discurso e a pose que a fizeram perder a razão. E por isso foi derrotada. Três anos de insultos diários aos professores e de humilhação total - «os professorzecos» - tinham de dar nisto.

Paz à sua alma!



Publicado por Ricardo Santos Pinto

Sem comentários: